Sei que andei sumida, mas aqui vai um resumo: minha rotina tem se resumido a estagiar e cozinhar. Nas últimas semanas fiz salmão com molho de alcaparras, frango assado com molho branco e batatas, arroz à piemontese com cogumelos 'selvagens' (nada de champingnon) e um bolo de chocolate avassalador. De resto, tenho saído pouco, mas lido muito. A vida está tranquila.
Na semana passada uma amiga do Brasil, com quem fiz uma aula de cinema na UFF e estava na minha turma de francês, me chamou para viajar. Ela estava fazendo intercâmbio de seis meses em Paris, viajamos na mesma época, e desde janeiro falávamos de viajarmos juntas. Em abril, durante as férias de primavera, tentei reviver esses planos, mas a agenda complicou e desistimos. Eis que ela me diz que está voltando para o Brasil na semana seguinte (hoje, na verdade!) e que queria viajar no fim da semana, perguntou se eu não queria lhe fazer companhia. Nem pensei duas vezes, estava mais do que na hora de nos reencontrarmos.
Escolhemos viajar pela França mesmo, algo que eu já estava pensando para o resto das férias de verão, mas não tinha visto possibilidades de acontecer; passagens de avião caras, passagens de trem caras. Escolhemos a região da Normandia, que Flora conhecia um pouco, mas só no inverno. Disse-lhe que não encontrava nenhuma passagem barata, e ela me sugeriu que olhasse o ferry-boat.
Taí, isso não tinha me ocorrido. Eu sabia que para ir da Inglaterra à Europa poderia-se atravessar o Canal da Mancha de ferry. Minha amiga Luísa tinha vindo assim na sua última visita, mas de ônibus. E eu lembro de ter visto, em Portsmouth, vários placas indicando diferentes portos, inclusive o de ferry-boats que levavam carros e pessoas. Resolvi pesquisar.
Encontrei a Brittany Ferries, que faz viagens da Inglaterra para a França e a Espanha. De Portsmouth, o porto mais próximo de mim e com maior frequência de trens, saía ferries para Caen e Le Havre na Normandia. Flora tinha citado Caen dentre as cidades que tinha vontade de conhecer, ficou decidido nosso destino. Comprei as passagens de ida e volta, e vi que precisava selecionar e pagar por lugares também. Além de cabines (de 2, 4, 6 pessoas) tinha a possibilidade de escolher cadeira reclinável, a opção mais barata - £5. Na viagem de volta, as cadeiras estavam esgotadas, fui obrigada a escolher a cabine de duas pessoas por £21, o que doeu um pouquinho no bolso, mas o total das passagens não ficou muito diferente das passagens de avião que estou acostumada a comprar: £90.
Na quinta-feira às 4 da manhã, saí de casa com minha malinha-tamanho-de-cabine-de-avião e uma mochila. Eu não tinha achado em nenhum lugar no site, nem nos termos de condições da viagem, se havia alguma restrição de bagagem, fora a restrição clássica de armas, objetos inflamáveis, etc. Achei melhor não arriscar com uma mala maior, até porque só passaria quatro dias viajando. Lá fui eu me aventurar pela madrugada, a pé, até a estação de trem - gastar com táxi nem pensar. Fora que, já me acostumei com tanto com esse caminho (quando fui para Berlim, a mesma coisa, fora as noites de voltar da balada de madrugada), que já não tenho receio. Esse sentimento de segurança não tem preço, e é uma das coisas que mais vou sentir falta quando voltar ao Brasil. Nos meus 40 minutos de caminhada na escuridão, encontrei três coelhinhos e dois caracóis nos arbustos que permeiam todo o caminho. Não vi nada nem ninguém que me deixasse apreensiva (com exceção de umas árvores que na escuridão pareciam as do filme da Branca de Neve), nada de mal me aconteceu.
Cheguei na estação de trem às 05h, para pegar o trem das 05h15 até Portsmouth. A viagem durou uma hora e meia e eu tinha que estar no porto 45 minutos antes do embarque, às 08h15. Eu tinha planejado bem o meu tempo. A viagem de trem seguiu tranquila, o mau tempo me impediu de apreciar o nascer do sol. Eu tinha até colocado um casaco que não usava desde o inverno, estava uma manhã bem fria.
Chegando em Portsmouth Harbour, uma das estações de trem da cidade, descobri que tinha que ter descido na estação anterior, Portsmouth and Southsea. O porto internacional ficava mais perto da outra, embora fizesse todo sentido que qualquer porto ficasse perto da estação chamada Harbour. Peguei um táxi, porque me disseram que a caminhada levaria uma meia hora, e era realmente um longo caminho. Chegando ao porto, fiz check-in, peguei meu bilhete e fui comprar uns euros na casa de câmbio. Tinha ainda uma lojinha de conveniências, onde comprei um café e fiquei fazendo hora no lounge de espera até chamarem para o embarque.
Na hora de embarcar, passamos por uma sala com esteira e detector de metais, como em um aeroporto, e depois entramos num ônibus que, depois de cheio, levou os passageiros para uma estrutura com rampas e escadas rolantes por onde subimos para acessar o ferry. Só então vi o tamanho da embarcação que eu iria viajar. Um navio, enorme. A maior embarcação que eu já tinha entrado na vida. Lá dentro, um mundo. Free shop, restaurantes, cinemas, sala de jogos, bar... nem acreditei. Me senti num cruzeiro, eu que nunca fui em um. Descobri onde era meu lounge de cadeiras, bem na proa, com um janelão para ver o mar. Minha cadeira era mais ao fundo, mas ainda dava pra ver bem o mar. E que cadeira confortável. Atrás das cadeiras havia uma estante para guardar as malas, e logo percebi que realmente não havia limite de bagagem. Cansei de ver gente com malas enormes, bolsas, sacolas, mochilas, à vontade. E tinha muitas crianças a bordo, tanto na ida quanto na volta. Aparentemente, ir à França de ferry é passeio de família. Como eu não tinha dormido nada naquela noite (ansiedade de viagem), me acomodei na poltrona e dormi.
Lá pelo meio dia, acordei e resolvi explorar o navio (vou chamar assim mesmo, não ligo se estiver errado). Havia dois restaurantes, um self-service, de preços moderados, e outro à la carte, de preços absurdos para meu bolso de estudante. Fui no self-service mesmo, que não era a quilo, como no Brasil: você passa a bandejinha, mas cada prato tem um preço, então fui bem cuidadosa nas escolhas. Resisti ao prato de camarões da parte de entradas e escolhi só um prato principal e uma sobremesa. Fish and chips e uma tarte au framboise - framboesa, minha recém descoberta fruta preferida.
Passadas as cinco horas de viagem, o navio aportou em Ouistreham, cidade (vila?) a trinta minutos de distância de Caen (se pronuncia 'cân') e fiquei feliz de ver como o clima do outro lado da Mancha estava completamente diferente do frio que tinha deixado para trás. O sol brilhava, as praias estavam cheias.
Desembarquei no porto e já fui desenferrujando meu francês, que estava adormecido; comprei um bilhete de ônibus para o centro de Caen e fui me aventurar pela cidade.
Eu só esqueci de pegar um mapa. E descobrir como chegava no albergue onde a Flora já estava me esperando. E nós estávamos conseguindo nos comunicar pelo celular. Mas eu resolvi descobrir meu caminho sozinha. Mas era feriado naquele dia e os transportes estavam reduzidos. O terminal de ônibus estava fechado, no de trem as pessoas só sabiam informar sobre trens. Fui para o ponto do tram, olhei um mapa, adivinhei meu caminho e entrei no próximo tram A que passou e desci no penúltimo ponto da linha.
Só que o albergue era na linha B, na mesma direção, mas na linha B. E eu só fui descobrir isso depois de andar léguas e léguas por uma cidade vazia, perguntar a várias pessoas, receber mil olhares de "sua louca, você ta muito longe pra ir a pé" até ter a lucidez de ligar para a minha amiga e perguntar como eu chegava lá. Achei um ponto de tram, entrei na linha A voltando pro centro, desci num ponto pra trocar pra linha B, troquei. Mas nisso, porque era feriado, os trams só passavam de meia em meia hora, e eu já tinha andado um bocado quando estava perdida. Um percurso que era pra durar meia hora eu fiz durar três horas. Mas cheguei a salvo no Auberge de Jeunesse, encontrei a minha amiga, e a jornada que parecia sem fim teve um final feliz.
Mais detalhes da viagem no próximo capítulo.
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